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Preservação de órgãos para transplante, a lesão de isquemia-reperfusão e a máquina de perfusão hepática

Atualizado em: 19/12/2023
Tempo de Leitura: 9 minutos
Sumário

Após a cirurgia de extração, o órgão do doador deve ser preservado até o momento do transplante propriamente dito — o implante do órgão no receptor.

Preservar significa colocar algo a salvo de qualquer dano ou mal.

Nós podemos perguntar então, mas qual mal ou dano ameaça o órgão do doador?

A preservação de órgãos para transplante demanda conhecimento aprofundado da lesão de isquemia-reperfusão com sua complexa interface que permeia desde a bioquímica, a imunologia até os cuidados pós-operatórios a beira-leito.

Por que “preservar” os órgãos? A lesão de isquemia-reperfusão e a preservação de órgãos

A ameaça aos órgãos dos doadores é a chamada lesão de isquemia-reperfusão. Por definição, trata-se de uma exacerbação paradoxal da disfunção e morte celular após a restauração do fluxo sanguíneo para tecidos acometidos por isquemia prolongada. A lesão de isquemia-reperfusão envolve um mecanismo bioquímico complexo que tentaremos definir brevemente nos próximos poucos parágrafos, pois a sua mínima compreensão é importante para seguirmos com a discussão da temática proposta. Porém, para os interessados, maiores detalhes sobre o tema podem ser encontrados na literatura médica.

Em outras palavras, uma vez que haja a interrupção do fluxo sanguíneo no órgão do doador inicia-se o período de isquemia — que, por definição, é a ausência de oferta de oxigênio para o metabolismo das células do órgão. Automaticamente, ocorre um bloqueio da cadeia respiratória mitocondrial pela ausência de oxigênio e inicia-se o metabolismo celular não associado com este elemento — o metabolismo anaeróbio. Agora, com as devidas explicações, nós podemos entender que durante o período de isquemia, ativa-se o metabolismo celular anaeróbio que possue baixa produção energética e progressivamente consome-se as reservas energéticas celulares e acumulam-se os seus subprodutos; fatores que contribuem com a lesão celular no órgão do doador.

Durante o reestabelecimento do fluxo sanguíneo ao órgão do doador no transplante, com o retorno da perfusão sanguínea e da oferta de oxigênio — em termos técnicos, a “reperfusão” — deveria esperar-se o fim dos problemas com o órgão; pois este momento se encerra o período de isquemia (a ausência de oxigênio). Porém, de forma contrária, o que se observa é que este reestabelecimento da perfusão e reoxigenação do órgão é acompanhada por um novo período de lesão celular. Entende-se que este segundo período danoso ao órgão seja associado principalmente com a produção de radicais oxidativos oriundos de uma cadeia respiratória mitocondrial disfuncional nas células e a ativação da resposta inflamatória imune com a liberação de marcadores inflamatórios (citocinas, quimiocinas, moléculas de adesão e proteases) que potencializam a lesão celular.

De forma importante, este dano celular ocasionado pela lesão de isquemia-reperfusão, se significativo, pode comprometer a função metabólica dos órgãos. Caso o comprometimento de função seja significativo, o órgão do doador pode não funcionar após o transplante.

Ainda, as consequências danosas da lesão de isquemia-reperfusão vão além do órgão transplantado. Ela também associa-se com a ocorrência da síndrome pós-reperfusão (depressão miocárdica, vasodilatação e hipotensão) e outras repercussões sistêmicas como danos às células dos vasos sanguíneos e falência orgânica multisistêmica.

Como prevenir a lesão de isquemia-reperfusão? A tradicional preservação estática no gelo

A preservação de órgãos foi a grande limitação para o desenvolvimento do transplante até a década de 1980. Objetivando prevenir um dano celular intenso, irreversível e rápido, pela lesão de isquemia-reperfusão — discutida cuidadosamente nos parágrafos anteriores — buscou-se diminuir o metabolismo celular dos órgãos de doadores através da refrigeração com a colocação do órgão dentro de uma caixa térmica com gelo macerado — desta forma diminui-se a taxa de metabolismo anaeróbio e a rapidez do esgotamento das reservas energéticas celulares. Este é o método tradicional utilizado há décadas para a preservação e transporte de órgãos para transplante e que comumente vemos nas cenas na televisão e cinema. Tecnicamente, ele é chamado de preservação estática no gelo.

Na prática, o órgão é colocado dentro de uma embalagem plástica estéril envolto em uma “solução de preservação” — que é um fluido com características próprias que evitam a troca de eletrólitos e água do órgão com a solução, o que poderia desencadear o edema celular e agravar o dano durante a reperfusão. Esta primeira embalagem vai envolta em outras duas, sendo que a mais externa estará em contato com o gelo macerado não estéril no interior da caixa térmica.

Orgãos de doadores para transplante são tradicionalmente preservados envoltos em solução de preservação em embalagens estéreis que são finalmente acondicionadas em caixas térmicas repletas de gelo macerado.

Neste ponto, o leitor pode se perguntar, mas por que mexer em time que está ganhando? Na medicina, como no mundo dos negócios, mudanças são necessárias para a adaptação a novos cenários que se impõe e também para a busca de melhorias.

O advento dos doadores de critérios estendidos e a necessidade da mudança

Apesar da preservação estática no gelo permanecer como o padrão ouro para a preservação de órgãos de doadores para transplante até o presente momento, sua hegemonia passou a ser contestada com o aumento de frequência dos chamados “doadores de critérios estendidos”. Os doadores de critérios estendidos são doadores de órgãos que apresentam condições clínicas que podem potencialmente comprometer a função do órgão após o transplante. Por exemplo, idade avançada, existência de comorbidades, infecções e tempo de internação prolongada são alguns deles. Então, por que os utilizar?

A utilização de órgãos de doadores de critérios estendidos é necessária atualmente pois eles correspondem a mais de 70% dos doadores de órgãos — segundo um recente estudo publicado com dados brasileiros — e pela alta demanda de órgãos para transplante com uma oferta numericamente insuficiente. Esta é uma realidade não apenas do Brasil, mas também da maioria dos países no mundo.

Deve-se destacar, entretanto, que estes órgãos de maior risco podem sim ser transplantados com segurança e com resultados pós-operatórios iguais aos de doadores padrão. Para isso, equipes de cirurgiões especializados em transplante empregam estratégias como por exemplo, o balanço de risco entre doador e receptor, abreviação do intervalo de preservação estática no gelo e de implante do órgão no receptor.

Finalmente, devemos lembrar que complicações pós-operatórias podem ocorrer após o transplante de fígado, independentemente das características do doador, e que, uma vez bem geridos, os riscos adicionais do uso de órgãos de doadores de critérios estendidos podem ser até mesmo completamente eliminados. Para entender melhor sobre os riscos do transplante de fígado, leia o nosso post anterior.

Os doadores de critérios estendidos e a lesão de isquemia-reperfusão

Resumidamente, os critérios utilizados para definir um doador de critério estendido objetivam indicar algum possível grau de lesão pré-existente aos órgãos doados — ou seja, ainda no doador. Por exemplo, a ocorrência de lesão das células hepáticas por “esteatose”, hepatites medicamentosas ou danos isquêmicos no caso do fígado; e no caso do rim, lesão infecciosa, medicamentosa ou por doenças prévias como diabetes e hipertensão.

A identificação deste grau de lesão pré-existente é importante pois, como explicamos acima, o órgão doado ainda passará inevitavelmente pela lesão de isquemia-reperfusão durante o processo de transplante. Como o leitor já pode esperar, quanto mais conseguirmos mitigar a lesão de isquemia-reperfusão, mais podemos aceitar os riscos intrínsecos de um órgão doado para aumentar a chance de transplante do paciente dentro de uma janela de tempo apropriada que permita salvar sua vida.

A estimativa acurada pelo cirurgião de transplante do dano final esperado ao órgão doado e a possibilidade de seu comprometimento funcional é que irão garantir em grande parte o sucesso do transplante.

Percebe-se, portanto, a complexidade do tema, em que o sucesso do procedimento extrapola — entre outros diversos aspectos não abordados aqui — apenas a execução precisa da técnica cirúrgica; fator decisivo quase que isoladamente em grande parte dos procedimentos cirúrgicos. Portanto, além do treinamento na área, os profissionais transplantadores, para obter os melhores resultados, devem se dedicar com afinco e dedicação constante a área — como vemos com frequência em países norte-americanos e europeus.

Os limites da preservação estática no gelo

Nas sessões anteriores, nós entendemos que a expansão da utilização de órgãos de doadores de critérios estendidos desafiou a capacidade das soluções de preservação e da tradicional preservação estática no gelo. Em outras palavras, sua capacidade de atenuar a lesão de isquemia-reperfusão para acomodar possíveis danos pré-existentes nos órgãos de doadores de critérios estendidos, os mais frequentes atualmente, foi superada.

Some-se a limitação da preservação estática no gelo na atenuação da lesão de isquemia-reperfusão em órgãos de doadores de maior risco com a discrepância entre os números de doadores e o de pacientes aguardando por um órgão para o transplante e torna-se claro que o desenvolvimento de estratégias para a melhor preservação de órgãos e a expansão contínua das suas taxas de utilização são emergenciais.

Consequentemente, estabeleceu-se a necessidade de mudança e há mais de uma década renovou-se o interesse na preservação dinâmica de órgãos como técnica substituta a preservação estática no gelo.

A preservação dinâmica de órgãos – a máquina de perfusão hepática

Contrário à preservação estática, na preservação dinâmica o órgão do doador não ficará “parado” (estático) durante sua preservação. Nesta técnica alguns dos vasos sanguíneos do órgão são conectados a cânulas que irão manter um fluxo contínuo de uma solução oxigenada através dele por meio de mecanismos de bombeamento acoplado a estas cânulas — manter a perfusão e oxigenação das células do órgão. Os equipamentos dotados dessa estrutura para a execução da preservação dinâmica são chamados de máquina de perfusão. Esta circulação contínua ainda melhora a preservação da microcirculação do órgão, oferece nutrientes para o metabolismo celular e remove os resíduos metabólicos tóxicos.

Portanto, a máquina de perfusão limita o dano isquêmico aos órgãos dos doadores (ao interromper o período de isquemia) e, mesmo, os “recondiciona” antes do transplante. Ou seja, além de atenuar a intensidade da lesão de isquemia-reperfusão, oferecem a possiblidade de tratamento do órgão do doador fora do corpo para melhorar sua qualidade. Estes tratamentos podem se dar experimentalmente através de intervenções farmacológicas (por exemplo, a remoção da esteatose do órgão) ou clinicamente através do reestabelecimento da função mitocondrial celular durante a perfusão (como na técnica HOPE — Hypothermic Oxygenated Perfusion).

Fígado de doador sendo preservado com a técnica HOPE (Hypothermic Oxygenated Perfusion) antes do transplante.

Estes métodos já são utilizados tanto a nível de pesquisa quanto de prática clínica assistencial em países europeus. No Brasil, recentemente publicamos a utilização da técnica HOPE permitindo o transplante hepático em cenários desafiadores com sucesso. Para acessar a publicação completa clique aqui.

A máquina de perfusão hepática e o Brasil

Nós concluímos no estudo citado acima que a longa extensão territorial do Brasil aliada a alta frequência doadores de critérios estendidos e de receptores com quadros avançados de doenças hepática em estágio terminal favoreceriam a implementação do uso regular e a expansão da utilização da máquina de perfusão hepática no país. O seu uso racional embasado pelo conhecimento científico deve guiar sua implementação de forma adequada, permitindo expandir com segurança a utilização de órgãos de doadores para transplante e beneficiar especialmente os pacientes com maior risco de óbito em fila de transplante (maiores detalhes estão apresentados em nossa revisão sobre o tema).

Atualmente, os principais desafios para sua implementação no país estão relacionados ao seu custo e regulamentações legais para utilização de novos equipamentos médicos. O mesmo drama repete-se ao longo do globo e apenas o trabalho conjunto de especialistas na área, gestores e indústria poderão viabilizar a superação desta barreira.

Portanto, conclui-se que apenas com a soberania do interesse da saúde dos pacientes sobre quaisquer outros econômicos ou políticos — tanto individuais quanto institucionais — que poderemos superar barreiras para a oferta de inovações dentro dos sistemas de saúde.

Por fim, discussões com especialistas na área acerca das diferentes técnicas disponíveis de máquina de perfusão, treinamento apropriado de equipes médicas quanto a sua utilização e, especialmente, quando utilizar a tecnologia são necessárias para o desenvolvimento de programas de máquina de perfusão economicamente viáveis que venham a atender as necessidades da população.

Foto Dr Yuri Boteon
Dr. Yuri Boteon
CRM: 144.829/SP
RQE: 56131 - Cirurgia Geral
Cirurgião da Equipe de Transplante de Fígado da Rede D’or. Professor da Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein e do Departamento de Cirurgia da Universidade Santo Amaro.

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